A irmandade dos pardos da Igreja da Boa Morte de Cuiabá, 1809

  ARTIGO  



 Por: Suelme Fernandes 

Toda vez que nos depararmos com alguns patrimônios históricos (no plural), seja públicos, prédios, igrejas e casarões ou privados como as relíquias familiares, lembranças, fotografais, relicários antigos temos que antes de qualquer impressão fazer algumas reflexões.

Porque esse escapulário ou aquela imagem sacra chegou até a mim? Porque fui o escolhido pra guardá-los? Porque esse bem  foi escolhida dentre tantos outros? Qual a importância e significado deles pra quem os guardou? Porque esse prédio, igreja ou casa está bem preservada e intacta e outros não ou já caíram? 

A partir da busca dessas respostas  entenderemos alguns significados dos nossos patrimônios históricos e seu valor inestimável.

Seguindo os sinais que os acasos da vida nos propõem, um certo sábado de um dia qualquer, saí da casa, no centro antigo de Cuiabá logo pela manhã cedinho e fui fazer uma caminhada, há um ano atrás. 

De longe ouvi o badalar dos sinos da Igreja da Boa Morte que fica aqui perto. Fui saber o que estava acontecendo e estava começando a bicentenária missa das 6:30, aos sábados na igreja, com poucos fiéis presentes, era um convite. 

Foi nesse dia que entrei pela primeira vez na singela igreja que vivia de portas fechadas, interrompi a caminhada e ouvi os chamados históricos e celestiais.

Os patrimônios históricos ganham outros significados quando ainda  cumprem alguma função social, mesmo que diferente da sua tradição cultural, desocupados ou em uso esses bens sempre serão dotados de inúmeros significados internos e externos nas memórias sociais de ontem e de hoje. 

Por isso, que para além do turismo fotográfico, há que se conhecer e conhecer seus os usos e costumes. Fazer uma imersão de fato no seu universo cultural. 

O antropólogo Bronislaw Malinowsky chamou esse método de aprendizagem de “observação participante”,  já Marilena Chauí definiu numa frase essa prática com uma frase ditado popular: “ninguém aprende a nadar sem entrar n’agua”.

Com olhar mais atento sobre a igreja descobri na história da devoção e culto à Santa, que se trata de uma das invocações de Maria, que é denominada Boa Morte e da Glória ao mesmo tempo, também chamada pela igreja  católica de trânsito de Maria, que encaminha o bem morrer e a entrada na glória celestial. 

Essa descoberta é um bálsamo para as almas aflitas em qualquer tempo, principalmente nesses dias em que a  mortandade ronda por perto é preciso ter fé na boa morte.

Por trás das fachadas das paredes grossas de terra crua da igreja, visíveis superficialmente por fora pelos passantes apressados da rua ou seguido pelos cliques infinitos vazios das fotos digitais de selfie para as redes sociais, existe um passado-presente vivo. 

O projeto urbano que passa pela escolha do local e mobilização social começou em 1809 com a fundação de uma irmandade, formada de pardos, que construiu e administrou com zelo dessa paróquia ao longo dos tempos para que chegasse até a nós em 2020, como uma cápsula do tempo. 

Uma confraria de irmãos de obrigação formada por homens e mulheres de cor, abrasileirados na miscigenação, com predomínio dos pretos e índios (livres, forrros) ascendidos socialmente, pessoas que através da fé conquistaram seu espaço social e espiritual. 

Não por acaso a Igreja da Boa Morte foi construída em 1810 fora do quadrilátero principal da Vila de Cuiabá nos arrabaldes, como se dizia. 

Seu entorno e jurisdição canônica no sentido atual abrangia da altura da rua Presidente Marques até a Avenida Mato Grosso alcançando os atuais bairros Lavapés e Quilombo que são de relevos íngremes, morrarias que eram espacialidades tradicionalmente de gente de cor, escravos fugidos e ex-escravos livres e índios em geral. 

A distinção entre os pardos da Boa Morte e os pretos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Cuiabá  não era a condição identitaria, mas sim o status social dos pretos e índios na Vila Real de Cuiabá. A primeira igreja da Boa Morte como espaço dos descendentes livres que se autodenominavam pardos  e no Rosário dos escravos e pobres.

Encontrei no Arquivo Público de Mato Grosso em documento inédito, importantes indícios capazes de apresentar um pouco das memórias e vivências históricas daquele espaço sagrado da Boa Morte no passado. 

O documento é um manuscrito antigo, denominado Compromisso da Irmandade dos Pardos da Boa Morte, fundada em 1809, o mesmo traz um universo fascinante do cotidiano da Cuiabá antiga.

São informações valiosas sobre a intrincada rede de relacis e competências que mantinhamviva a religiosidade daquela igreja numa sociedade matizada e excludente. Tal passado apagado pelo tempo voltaram à tona do nada depois daquele badalar de sinos na minha cabeça, como uma anunciação ou chamamento divino.

Quantos de nós tem a capacidade, sensibilidade para ouvir esses sinais que os lugares e objetos de memórias nos emite diariamente? Ou de fazer essas perguntas ?

A principal obrigação da irmandade era celebrar a festa da santa anualmente no dia 15 de agosto. Como na sociedade escravista colonial existia estratificações sociais, essas associações eram subdivididas em categorias.

Na primeira classe, formada por aqueles provedores ricos que além das obrigações das anuidades poderiam adquirir uma jóia de 300 mil réis para a festa da santa; A segunda classe, formada por 12 irmãos de mesa, de reza e empregados e a terceira classe, formada pelos menores e analfabetos que seriam responsáveis pelo saco da esmola da igreja e pela manutenção das velas de cera nas celebrações. 

Todos membros novos deveriam pagar 12 mil réis na entrada e como os demais membros, 3 mil de anualidade.

A organização da irmandade previa os seguintes cargos eleitos anualmente escolhidos entre os cidadãos da 1a e 2a classe, na seguinte ordem hierárquica: 1 prior, 1 provedor, 1 provedora, 1 secretário, 1 tesoureiro, 1 procurador e 1 andador, 12 irmãos mesários e 12 esmoleiros. 

Destaco aqui a importância das festas religiosas nas fronteiras tênues entre o sagrado e o profano e na manutenção do status social e lazer nas vilas e cidades coloniais.

A ordem dos assentos e acesso aos bancos nas celebrações da igreja, seguia rigorosamente essa hierarquia do compromisso. Ass primeiras filas mais próximas ao altar e do ministro da palavra eram sempre da primeira classe em diante de forma decrescente até a porta de saída.

O documento também define os casos de expulsão dos membros da irmandade e por outro lado, demonstra a existência de redes de solidariedade àqueles que por ventura caíram em miséria ou desgraça, havendo inclusive a obrigação da mesa socorrer esses infelizes. 

Essas redes de solidariedade entre os pretos e pardos nas irmandades ao longo da história colonial sustentou várias estratégias de fuga na colônia, financiamento de quilombos e alforrias de pretos escravizados. 

Sob os auspícios eclesiásticos das organizações religiosas, os grupos sociais se articulavam intensamente nos bastidores das sacristias. 

Todos os membros da mesa tinham distinção nos cultos e procissões, com uso de uma opa branca de seda, cetim ou tafetá e outros pingentes amarados com fita azul no antebraço. 

O  prior, cargo máximo da irmandade e o provedor tinham nos cultos e eventos religiosos lugar destacado nos assentos, uma opa diferenciada, bordada á ouro com duas esfinges de Nossa Senhora da Boa Morte no peito, uma vara  de mão de prata da irmandade e uma fita azul no antebraço direito; O tesoureiro, por sua vez, tinha uma clave de prata amarrada com uma  fita azul no antebraço; O  secretário,  um pingente de pena de prata no mesmo local; O provedor, a letra P e o Andador que era o responsável de organizar as tochas na procissão e carregar o crucifixo, a letra A em destaque com fita azul no braço. 

Os irmãos de mesa poderiam usar apenas um laço azul amarrado no braço e os irmãos da esmola não possuíam diferenciação alguma. 

Além dessas distinções sociais nas vestimentas ,na morte os associados da confraria tinham muito auxílio fúnebre no pós mortin: várias missas póstuma e exéquias que variavam de quatro a dez celebrações dependendo da posição na irmandade; Extrema unção do Santo Padre; Acompanhamento dos irmãos nas enfermidades; Sepultura em local reservado no Cemitério da Piedade (também segregado da grade pra cima e da grade pra baixo, conforme a graduação de cada irmão); Mortalha diferenciada e caixão personalizado com acompanhamento no cortejo pelos andadores, com crucifixo e tochas da irmandade. 

Numa sociedade religiosa segregada socialmente, esses privilégios, mercês, títulos, dons e benesses possibilitavam um pertencimento, uma mobilidade e status social em todas os espaços urbanos, públicos e privados garantindo o bem viver. 
A irmandade, em 1871 tinha predominância de mulheres e era formada por 190 membros, sendo 85 homens e 105 mulheres, 6 padres e 19 militares (10 alferes, 06 capitães, 2 sargentos e 1 tenente). 

Depois desse longa caminhada de mais de 50 minutos, descobri porque a igreja permanece em pé apesar do tempo e por não ter sofrido até hoje nenhuma grande reforma, dentro daquela provocação inicial que fiz na busca dos porquês. 

Cheguei a conclusão que a irmandade que construiu a igreja queria na verdade deixar um documento-monumento histórico para posteridade e marcar a mudança e a presença na sociedade colonial de uma nova classe econômica, nativa da terra. 

A classe dos pardos, sem discutir as definições de categorias políticas ou relações de racismo e escravidão foi e é o resultado dos encontros violentos e/ou consentidos assimétricos  entre pretos, brancos e índios. 

Dessas relações imbricadas consolidou-se algumas peculiaridades que no jogo da alteridades do eu - outro a formação de um  povo e nação, alegrias e tristezas.

Aliás, até hoje, parte dos brasileiros se autodefinem nos censos do IBGE como pardos. Olhando sob o prisma da teoria do branqueamento ou não, isso é um fato. 

São apenas algumas reflexões das muitas possíveis que nasceram a partir desse olhar curioso sobre essa igreja, o eu e o nós, nossas identidades plurais e sincréticas.

Um templo religioso de pardos que abrigava uma nova “classe” social que não se enxergava  frequentando  a irmandade e igreja matriz dos brancos do Bom Jesus de Cuiabá  e nem tão pouco, na igreja de escravos pretos e pobres de Nossa Sra. do Rosário. 

Na dimensão simbólica e religiosa, a igreja manteve-se preservada primeiramente por zelo da Igreja Católica, mas também para advertir ás novas gerações sobre a necessidade do sagrado diante da inevitável morte que mais certo ou mais tarde chegará para todos indistintamente apesar de nossa longevidade e a necessária fé na salvação e vida eterna. Lembrei até do premiado filme “Nós que aqui estamos, por vós esperamos” de Marcelo Masagão.

Nesse momento de pandemia, a ciência foi posta à prova e a fé se tornou o único consolo e socorro para muitos e a busca da Boa Morte e a Glória eterna tornou-se imprescindível.

Sempre achei muito digno e atual a proposta dessa igreja, que para muitos é mórbida, imaginem uma santa dedicada a hora final? Pensei, já que existe a N. Sra.do Bom Parto, Desatadora de Nós nada mais justo que á Santa da Boa Morte. 

A existência dessa igreja com esse louvor serve também para nos lembrar sempre sobre nossa fragilidade, nossa finitude humana e sobre os cuidados terrenos morais e religiosos que precisamos ter para termos uma boa passagem para a vida eterna. 
Já que esse ano não teremos a festa da Santa que se comemora no dia de hoje 15/08 e o badalar dos sinos, procissão, fogos, quermesse e festas como antigamente, resta-nos em sua homenagem  como historiador lembrar que toda relíquia familiar ou patrimônio edificado tem uma riqueza simbólica imaterial intrínseca que ultrapassa a dimensão física imediata e que esses símbolos  permanecem vivos nas memórias das pessoas e dos documentos-monumentos. 

Esses vestígios de história ainda existentes em Cuiabá são essenciais para nosso equilíbrio mental, nossa qualidade de vida nas cidades e para entender quem somos e da onde viemos nessa sociedade adoecida, violenta, excludente motivada pela cultura do consumismo, do individualismo, do descarte e cancelamento. 

E quando entendeemos a importância de preservarmos os objetos e lugares de memórias que vem com a sabedoria dos antigos, dos mais velhos, não precisaremos tomar remédios ansiolíticos para suportar nossos medos do futuro ou de morrer um dia e ter a impressão que vivemos em vão.

Como diria Pedro Casadáliga pouco me importa aonde vão me enterrar, “joguem meu corpo no rio Araguaia”, essa é a consciência de quem já tinha deixado seu legado. 

Essa igreja como outros lugares, nos propõe descobrir a arte do bem viver e do bem morrer, o grande mistério da vida.




SUELME FERNANDES é analista político e 
Mestre em História.

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