Rondon e Dom Aquino: "entre a cruz e a espada"


 Domingo, 22 de junho de 2025 

Nas terras quentes do coração da América do Sul, entre rios, florestas e aldeias, desenhava-se um embate que ia além dos mapas e das linhas telegráficas. Era um conflito de crenças, valores e projetos de civilização.

De um lado, Cândido Mariano da Silva Rondon, positivista, defensor da ciência, da razão e dos direitos indígenas. Do outro, Dom Aquino Corrêa e os missionários Salesianos, que empunhavam a cruz como instrumento de conversão e redenção realizavam o chamado sonho de Dom Bosco de catequizar os indígenas. 

Rondon via os povos originários como detentores de saberes milenares, com direito à própria cultura, idioma e espiritualidade. Já Dom Aquino acreditava que a salvação da alma e a moral cristã eram os únicos caminhos para o progresso. “Não há ordem sem Deus, nem progresso sem batismo”, afirmava o bispo, fundador da Academia Mato-grossense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, em 1919.

Na década de 1930, o antropólogo Claude Lévi-Strauss testemunhou o rastro desse embate. Ao visitar Dom Aquino, ficou estarrecido com suas palavras carregadas de preconceito sobre os indígenas: “Esses preguiçosos devem ser chamados à santidade do trabalho”. Para Lévi-Strauss, a catequese imposta não era caridade, mas uma violência sofisticada que anulava identidades.

Claude Lévi-Strauss

Rondon criticava abertamente o projeto missionário, que considerava uma forma de colonização cultural. Forçar os indígenas a abandonar seus rituais, línguas e modos de vida, impondo a moral cristã e a organização social europeia, era, para ele, uma afronta à dignidade dos povos. “Civilizar não é converter. O Estado não tem religião, deve proteger, não catequizar”, escreveu ao Ministério da Guerra, protestando contra as doações de terras públicas às missões em locais como Sangradouro e Meruri.

Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos, descreve como a simples alteração do traçado circular das aldeias Bororo pelos padres, substituindo-o por um modelo retangular cristão, gerava uma ruptura profunda na vida social e espiritual dos indígenas. “A cruz e o arado substituíram a floresta, trazendo o esquecimento”, registrou. Ao contrário de Rondon e Aquino, Strauss era contra todos os tipos de contatos externos com as etnias.

Os encontros entre Rondon e Dom Aquino, embora pautados pela diplomacia, carregavam tensão. Enquanto o bispo defendia que “negar Cristo é negar-lhes a dignidade de homens civilizados”, Rondon rebatia com firmeza: “Negar sua cultura, seus deuses e sua história é indigno da República”.

Cada aldeia tornou-se palco de uma disputa silenciosa. De um lado, as capelas e os internatos e oficinas dos Salesianos; do outro, o sonho de Rondon por escolas públicas que ensinassem o português, sem sufocar os idiomas ancestrais. Disputava-se não apenas o corpo indígena, mas sua memória, sua alma e seu futuro.

No fundo, o que estava em jogo era a própria definição de Brasil: uma nação laica, plural, feita de diferenças, ou um projeto civilizatório assentado na cruz e na catequese?

Entre hóstias e teodolitos, entre rosários e postes telegráficos, desenhava-se o mapa da disputa pelo destino dos povos originários.
O legado desse embate ecoa até hoje, quando ainda se discute quem deve decidir sobre os destinos dos povos indígenas: o Estado, as igrejas, as ONGs ou as próprias comunidades.

Rondon e Lévi-Strauss, à seu tempo, valores e maneiras, nos alertam: a verdadeira civilização existe quando os povos indígenas são livres. Livres da cruz, livres da espada e, sobretudo, livres para escolherem seus destinos, sem a tutela alheia.


 *Suelme Fernandes é mestre em história e membro da IHGMT .




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