Único tetra-campeão paulista é um time que "nem existe mais"

Campeão paulista de 1916 a 19, Club Athletico Paulistano superou Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos


 Quarta-feira, 12 de março de 2023 

Tarde de domingo, chuva, dificuldade para os torcedores chegarem ao estádio, arquibancadas lotadas, suspeita de entrega de jogo, e volta por cima após crise durante o campeonato. O cenário poderia bem descrever competições recentes do futebol brasileiro, mas remete ao longínquo ano de 1919. Mais exatamente a 21 de dezembro de 1919. Dia em que o Club Athletico Paulistano conquistou o tetracampeonato paulista, feito jamais repetido.

Hoje o Paulistano não disputa competições de futebol profissional, mas abriga milhares de sócios em suas piscinas e quadras num bairro nobre da cidade de São Paulo. E em uma das salas do enorme terreno conta sua história com detalhes. Campeã em 1916, 17 e 18, a equipe também festejou seu quarto título seguido com vitória sobre o Corinthians. As taças Jockey Club (pelas duas primeiras conquistas) e Cidade de São Paulo (pelas seguintes) residem na sala da presidência.

Sem televisão ou internet, os jornais da época esmiuçavam cada detalhe dos embates. O “boletim sportivo da Gazeta” do dia seguinte, por exemplo, descreve os hoje inimagináveis 27 chutes a gol do primeiro tempo, que terminou com vitória do Paulistano por 2 a 0 sobre o Corinthians.

Em 1919, primeiro entraram os times no campo do Jardim América, sede construída dois anos antes, e que até hoje abriga o clube. O último a chegar foi o árbitro Demosthenes de Syllos, às 16h02. Encontrou um gramado castigado pelo jogo anterior, das chamadas “segundas equipes”, e também pelo temporal, que há 105 anos insiste em fazer companhia aos paulistanos.

Zito, de cabeça, abriu o placar. E o astro Friedenreich faria, ainda no primeiro tempo, o segundo gol, descrito assim na “Gazeta”, com acentos respeitando a gramática da época: “Friedenreich, recebendo bom passe de Zito, manda um belissimo kick em goal, rasteiro, de uns 30 metros de distancia, fazendo assim o segundo goal do dia, ás 4,38”.

Garcia, considerado o melhor jogador do Corinthians em campo, diminuiu na etapa final, mas Friedenreich e Agnello colocaram fim às pretensões alvinegras, e garantiram o tetra. Arnaldo; Orlando e Carlito; Sergio, Rubens e Benedicto; Agnello, Mario, Friedenreich, Zito e Cassiano. Esses foram os heróis que ostentam até hoje a conquista que Neymar e companhia tentarão igualar a partir de domingo. Uma conquista que contou com um elemento muito comentado nos últimos anos no futebol brasileiro: a suspeita de que o adversário, já sem chances de ser campeão, entregaria o jogo ao Paulistano.

“Como se sabe na semana anterior, corriam varios boatos acerca da attidude do Corinthians no encontro anunciado. Desconheciam-se os divulgadores dos boatos, segundo os quase o antigo campeão da Liga pretendia entregar a partida”, relatou o jornal “ O Estado de S. Paulo” após o tetracampeonato. O clube alvinegro terminou o campeonato na terceira colocação, com 26 pontos, atrás de Paulistano (30) e Palestra Itália (29). Nenhuma publicação, entretanto, explica os motivos dos boatos, se já seria em razão de uma rivalidade com o Palestra, futuro Palmeiras, que dependia de uma derrota do Paulistano para levantar o troféu do torneio organizado pela APEA (Associação Paulista de Esportes Atléticos).

A derrota por 4 a 1 foi a maior da história de nove anos do Corinthians, o que fomentou ainda mais a desconfiança, mas os jornais foram veementes em defender a postura da equipe. Sorte dos jornalistas que ainda não havia redes sociais para acusá-los de “imprensa corintiana”... Eles apontaram a escalação de Neco, destaque do time que estava doente, e a pressão para tentar o empate no segundo tempo, como provas de que levaram a sério a decisão.

Na comemoração do título, nada de declarações provocativas. Um exemplo de cordialidade. O presidente corintiano Guido Giacominelli e o capitão Amilcar foram ao vestiário do Paulistano, elegantemente chamado de “aposentos”, e parabenizaram os campeões. Amilcar recebeu uma taça de champanhe, e o Alvinegro foi saudado com um “hurrah!”.

Bondes: os vilões da época

A cidade de São Paulo ainda estava longe de sofrer com o insuportável trânsito atual, mas chegar ao estádio já era um fardo. E a grande vilã do dia do tetra foi a Light, empresa responsável pelos bondes da capital em 1919. Os veículos sairiam do Viaduto do Chá em direção ao fim da Rua Augusta, próximo ao Paulistano. Mas o ritmo lento, a superlotação e os intervalos enormes entre um carro e outro levaram os jornais a chamarem os bondes de “pacientometros”. Veículos que mediam a paciência dos torcedores.

A paciência não durou muito. Todos os relatos indicam que famílias inteiras desceram dos veículos na Avenida Paulista, e caminharam por toda a Rua Augusta. Os termos utilizados eram um espetáculo à parte. Segundo o jornal “O Estado de S. Paulo”, a Light submeteu seus passageiros a um “raid de pedestranismo effectuado justamente na ocasião em que o Padre Eterno impiedosamente abria  todas as torneiras do céu”. Tudo isso para dizer que os cidadãos andaram debaixo de chuva intensa.

Crise, concentração e volta por cima

Desde que o mundo é mundo, há crises e medidas enérgicas para combatê-las no futebol. Uma semana depois, a sede do Paulistano recebia damas, cavalheiros e orquestra para festejar o tetra. O auge seria uma queima de fogos às 22h. Chance para o presidente, ou melhor, “sportsmen” Antonio Prado Junior falar sobre a temporada.

Uma temporada cheia. O campeonato de 1918 só havia terminado no início de 19, em razão do que ficou conhecida como gripe espanhola, uma epidemia originada pelo vírus H1N1. Em junho teve início o novo torneio, e na sexta rodada uma derrota dos tricampeões para o São Bento provocou medidas enérgicas.

- Reuni todos os rapazes do primeiro quadro, e lembramos-lhes que o clube, na posição em que se achava, não poderia desmoralizar-se assim dessa maneira. Foi então que todos, com grande fé, resolveram reagir, obedecendo a outro programa mais eficaz - disse o presidente, talvez um dos inspiradores do são-paulino Juvenal Juvêncio.

Em seguida, Prado explicou detalhadamente o “programa”, que hoje seria chamado de concentração rigorosíssima. Os jogadores passaram a dormir na sede do clube. Religiosamente, deitavam-se às 22h e acordavam às 6h. O primeiro passo era a ginástica sueca, método desenvolvido no século 18, seguido de exercícios respiratórios.

- Depois passeavam em marcha regular, acelerada, e corriam a volta do campo nos bicos dos pés. Além disso, havia uma corrida de velocidade de cem metros. Voltavam, depois disso, à ginástica sueca. Uma vez por semana faziam uma marcha regular de soldado pelo Jardim América - completou o rigoroso presidente, que ao menos não precisou garantir o técnico, figura inexistente na fase amadora do futebol.

Todos os jogadores daquele time já faleceram. A história está viva. 


* fotos pertencentes ao Acervo do Centro Pró-memória do Club Athletico Paulistano


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