Após compra de banco, Record recebe verba misteriosa de R$ 3,2 bilhões

Foram feitas duas operações, uma de R$ 1,051 bilhão, como passivo circulante e uma de R$ 1,892 bilhão, como passivo não circulante

 

 Segunda-feira, 01 de novembro de 2021 

O ano de 2020 foi atípico para muitas empresas brasileiras. Pressionadas pela queda de faturamento durante a pandemia de Covid-19, elas amargaram prejuízo e até venderam parte de seu patrimônio para manter as operações. Mas na Record um fenômeno surpreendente aconteceu: no balanço da empresa, o patrimônio líquido consolidado, que era de R$ 1,826 bilhão em 31 de dezembro de 2019, saltou para R$ 5,050 bilhões um ano depois. 

De acordo com balanço publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo, em um ano o patrimônio da emissora deu um salto de R$ 3,2 bilhões, um milagroso crescimento de 176,6%. Isso apesar de as receitas brutas consolidadas com publicidade terem caído de R$ 2,214 bilhões em 2019 para R$ 2,077 bilhões. 

Os R$ 3,2 bilhões adicionais aparecem em duas linhas no balanço como "operações de intermediação financeira". Usualmente, esse tipo de operação ocorre quando uma empresa realiza um empréstimo para outra. Isso pode acontecer entre empresas de um mesmo grupo ou de um banco para um cliente, por exemplo.

Uma das operações, no valor de R$ 1,051 bilhão, foi lançada como passivo circulante (que são as dívidas de curto prazo). A outra, de R$ 1,892 bilhão, entrou como passivo não circulante (as dívidas de longo prazo). 


Ninguém sabe, ninguém viu 

A reportagem entrou em contato com a Record para questionar o aumento do patrimônio líquido e a que se referem as operações de intermediação financeira. Por meio de sua assessoria de imprensa, a empresa respondeu que "todas as explicações necessárias foram publicadas". 

Mas, diferentemente do informado, o balanço da empresa não explica a origem dos R$ 3,2 bilhões. Questionada se esses dados estariam em outros documentos públicos que não o balanço, a emissora não respondeu

Fontes na Record ficaram surpresas ao saber do montante. 


De onde vem o dinheiro? 

Dois diretores financeiros ouvidos pela coluna estranharam o tamanho do valor da operação. "É um valor muito alto em relação ao patrimônio da empresa", disse um deles, que pediu para não ser identificado. 

Para efeito de comparação, o lucro da Record em 2020 foi de R$ 143,678 milhões. Uma fração dos R$ 3,2 bilhões. O patrimônio total do grupo, antes do empréstimo, era de pouco mais de R$ 1,8 bilhão.

Um segundo diretor financeiro ouvido pelo Notícias da TV achou estranho não ter ao menos uma nota explicativa no balanço. "Se são auditados, o natural seria que a auditoria explicasse algo atípico no próprio documento". 

A Record é um grande grupo de mídia. Além da TV, reúne rádios e o portal R7. O bispo Edir Macedo, acionista majoritário da empresa, também possui muitos outros negócios, inclusive um banco. E tudo indica que seja do banco que o dinheiro saiu.


O banco do bispo Edir Macedo 

Edir Macedo é sócio do banco Digimais, antigo banco Renner, que pertencia à família Renner, dona das lojas de mesmo nome. Em 2013, ajudado por um decreto da então presidente Dilma Rousseff, de quem era muito próximo, Macedo adquiriu 49% das ações da instituição gaúcha como "sócio estrangeiro", por ter residência no exterior. A aquisição foi feita por meio da B.A. Empreendimentos e Participações Ltda, que é controlada pela Rádio e Televisão Record S.A., a razão social da Record.

Em julho de 2020, após aval do Banco Central, Macedo comprou o restante da operação do banco Renner. Após uma disputa pelo uso do nome do banco (a família Renner exigiu a mudança), a instituição passou a se chamar Banco Digimais.


Muitas empresas, um único dono  

E é nessa aquisição do banco em 2020 que está a chave para o salto quântico do patrimônio da Record. Em 21 de agosto de 2020, a Rádio e Televisão Record realizou um aumento do capital social. O valor foi para R$ 78,714 milhões, um aumento de R$ 3,714 milhões, representados pela emissão de 1.233 novas ações ordinárias nominativas, sem valor nominal, conforme a empresa informou no Diário Oficial.

As novas ações foram totalmente subscritas e integralizadas pelo bispo Edir Macedo, acionista da Record. Ou seja, Macedo recebeu mais ações de sua própria empresa. 

Posteriormente, em abril de 2021, a Record realizou um novo aumento de capital social usando parte do lucro do ano fiscal 2020. A emissora adicionou R$ 121,286 milhões, ampliando o capital de R$ 78,714 milhões para R$ 200 milhões.  

As ações da Record que pertencem a Edir Macedo ficam dentro da B.A. Empreendimentos e Participações Ltda., que também tem como sócios Isaias Ribeiro de Oliveira, João Luiz Urbaneja e a Record S.A.

A holding de Macedo atua primariamente como instituição financeira e tem faturamento presumido de R$ 700 mil a R$ 4 bilhões por ano, tendo entre 1.001 e 5.000 mil funcionários. Dentro da Holding B.A. Empreendimento e Participações também está o banco Digimais. 


Dinheiro do banco para a TV 

Segundo dados do Sistema IF.data, do Banco Central, o Digimais captou quase R$ 3,2 bilhões (exatos R$ 3.126.404.000) até de março de 2021. O valor coincide com o número apresentado no balanço da Record. 

Reforçando essa tese, o sistema do Banco Central aponta ainda que, em março de 2021, o Digimais reportou R$ 1,57 bilhão de aplicações interfinanceiras de liquidez. E mais R$ 1,69 bilhão de operações de crédito líquidas de provisão (novamente, a soma dos valores dá R$ 3,2 bilhões).


Por que a origem do dinheiro é importante? 

Nada impede que uma empresa de comunicação e um banco tenham o mesmo controlador. Do ponto de vista do Banco Central, o banco Digimais é parte da Rádio e Televisão Record S.A., ou seja, o valor que consta no balanço consolidado da empresa controladora não é um empréstimo.  

Caso fosse um empréstimo, isso poderia ser um problema, já que a Record tem patrimônio inferior ao valor recebido. O patrimônio total do Digimais é de pouco mais de R$ 4 bilhões. Se emprestasse mais de R$ 3 bilhões à Record, o Digimais alocaria mais de 75% de seu patrimônio em um único empréstimo. 

A Record e o Digimais não responderam às perguntas do Notícias da TV sobre os motivos que levaram a tal organização societária. Já o Banco Central, responsável por fiscalizar os bancos brasileiros, afirmou que "não comenta assunto específico de uma instituição financeira"

A Record, assim como outras empresas de capital fechado, não é obrigada a dar detalhes de seu balanço. Mas por se tratar de um grupo de mídia com atuação jornalística e detentora de uma outorga pública, se torna essencial entender melhor a origem de quantia tão expressiva e suas ramificações.  


Dono da CNN também tem banco 

A Record não é o único grupo de mídia que tem um banco. Rubens Menin é dono da CNN do Brasil e acionista do banco Inter. Em 2019, a Record inclusive atacou empresas de Menin. 

O balanço da Record, agora com capital do Digimais, é um exemplo da complexa rede de negócios do bispo Edir Macedo e de um dos maiores grupos de comunicação do país. O Digimais pode, por exemplo, captar dinheiro em operações bancárias lastreadas em títulos públicos ou mesmo captar dinheiro entre consumidores. O financiamento de carros atualmente é o maior negócio do banco.

A coluna segue aberta para ouvir a Record, o Digimais e o Banco Central.

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