123 profissionais da Prevent Senior esconderam que o negacionista Anthony Wong morreu de Covid-19

 Wong era uma celebridade nas redes sociais bolsonaristas em razão do seu negacionismo. Em vídeos, ele desprezava a pandemia e a vacinação.


 Quarta-feira, 22 de setembro de 2021 

Quando o pediatra e toxicologista Anthony Wong morreu, aos 73 anos, no dia 15 de janeiro de 2021, sua família divulgou, em nota, que ele havia sido hospitalizado com queda de pressão e mal-estar. Internado, recebeu o diagnóstico de úlcera gástrica e hemorragia digestiva. “Durante a internação, evoluiu com quadro de descompensação do padrão cardíaco e padrões de fibrilação atrial”, informa o texto. Em português, teve fortes alterações no ritmo cardíaco e depois sofreu uma parada cardiorrespiratória. A nota omite, contudo, que Wong fora internado com sintomas de Covid-19 e que, ao final de quase dois meses no hospital, tornou-se uma das quase 600 mil vítimas da pandemia no Brasil. A piauí teve acesso ao conteúdo do prontuário médico de mais de 2.000 páginas, no qual se descreve todo o tratamento até sua morte. Teve acesso, também, ao atestado de óbito, onde não há qualquer menção à morte por Covid.

Wong era uma celebridade nas redes sociais bolsonaristas em razão do seu negacionismo. Em vídeos, ele desprezava a pandemia e a vacinação. Compunha um trio com a imunologista e oncologista Nise Yamaguchi e o virologista Paolo Zanotto. Como pediatra, Wong formou uma farta clientela desde os anos 1980 entre a elite paulistana. Quando surgiu a pandemia, ele começou a enviar vídeos aos pais de seus pacientes que, preocupados, pediam que o médico explicasse o que era a Covid-19 e seus efeitos. Os conteúdos acabaram viralizando, e o médico decidiu criar contas no YouTube e no Instagram para publicar suas opiniões. Tinha milhares de seguidores. Quando morreu, seus familiares excluíram os canais e nunca aceitaram pedidos de entrevista.

Em outubro de 2020, numa audiência online promovida pela Câmara dos Deputados com médicos que criticavam o isolamento social e promoviam o tratamento precoce contra a Covid, Wong deu algumas de suas últimas declarações públicas. Defendeu a chamada “intervenção vertical”, que é o isolamento apenas de idosos e gestantes, e a volta à normalidade para o restante da população. Disse que uma segunda onda, se houvesse, chegaria apenas em maio deste ano (chegou em fevereiro), e afirmou categoricamente, sem qualquer base científica, que o brasileiro tinha imunidade alta contra os diversos tipos de coronavírus: “Se fossem feitos testes como os que foram feitos em outros países, nós verificaríamos talvez que o índice de imunidade da população em geral também é alta, especificamente para a Covid-19”, disse. O Brasil, como se sabe, é o segundo país, atrás apenas dos Estados Unidos, com mais mortos na pandemia.

No dia 17 de novembro, Wong foi internado no hospital Sancta Maggiore do Itaim Bibi, na Zona Sul de São Paulo. O estabelecimento pertence à rede Prevent Senior, que está agora sob investigação da CPI da Pandemia sob suspeita de cometer uma série de irregularidades. Quando deu entrada no Sancta Maggiore, o médico contou que estava com sintomas de Covid-19 havia oito dias. Também disse que vinha fazendo uso de hidroxicloroquina, medicamento que os negacionistas insistem em receitar contra a Covid, apesar de não ter qualquer eficácia comprovada. Um exame de PCR feito no hospital confirmou a presença do Sars-CoV-2. Era a segunda vez que Wong contraíra a doença. Da primeira, no início da pandemia, em abril de 2020, recuperou-se bem. Disse que fora assintomática.

No dia da internação, segundo consta do prontuário médico, Wong autorizou ser medicado com o “kit Covid” da Prevent Senior, composto de hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina. O tratamento precoce durou quatro dias, e Wong passou a usar outros remédios, todos sem comprovação pela ciência. Recebeu heparina inalatória, cujo efeito em infecções virais é desconhecido, e metotrexato venoso, tradicionalmente prescrito no tratamento de doenças autoimunes e inflamatórias crônicas, como artrite, mas sem efeito comprovado contra a Covid. Juntamente com essa leva de tratamentos experimentais, Wong recebeu mais de vinte sessões de ozonioterapia retal, tratamento que até mesmo o Ministério da Saúde no governo Bolsonaro desaconselha. Em nota divulgada em agosto de 2020, a pasta informou: “O efeito da ozonioterapia em humanos infectados por coronavírus (Sars-CoV-2) é desconhecido e não deve ser recomendado como prática clínica ou fora do contexto de estudos clínicos.” Seu uso, na verdade, só é autorizado para testes clínicos em instituições autorizadas. A Prevent Senior não é uma delas. 

Sem que a medicação ajudasse em sua melhora, o médico foi entubado no dia 21, quatro dias depois de sua internação. Segundo o prontuário, a médica responsável pelo paciente era justamente Nise Yamaguchi, afastada do hospital Albert Einstein depois de declarações em que comparou o medo de pegar Covid à reação do povo judeu diante do nazismo. Os dados do prontuário constam de um processo movido pela Prevent Senior no Cremesp contra um médico acusado pela rede de vazar informações sigilosas sobre o estado de Wong.

No nono dia de tratamento, Wong desenvolveu uma hemorragia digestiva que, segundo o prontuário, foi revertida em menos de 24 horas, depois de ele ter recebido transfusões de sangue. Durante o restante do período de intubação, ele deixou de ser medicado com o kit Covid — ficou apenas com a ozonioterapia e o metotrexato venoso. Wong também desenvolveu insuficiência renal e foi submetido a frequentes sessões de diálise, que filtram o sangue quando o rim já não consegue mais eliminar as toxinas do corpo. O médico foi ainda retirado da intubação e submetido a um procedimento, mais invasivo, de traqueostomia, que consiste na inserção de um tubo na traqueia para permitir a respiração. 

Ao final de seus dias, o médico fora infectado por uma pneumonia bacteriana que não cedia à medicação aplicada. Era outra consequência da Covid, já que respiração mecânica oferece o risco de infecções bacterianas. A infecção se espalhou pelo corpo, resultando em um choque séptico, que provocou a falência dos órgãos e uma parada cardiorrespiratória. 

No dia 15 de janeiro, data da morte de Wong, o prontuário relata uma troca de orientações entre a médica Fernanda Igarashi, que assina o atestado de óbito, e seu chefe Fernando Pinho Esteves, coordenador médico da Prevent Senior. Segundo as comunicações do documento, percebe-se que a hierarquia das decisões era exercida por Yamaguchi, mas quem executava, na ponta, era Igarashi, sob orientação de Esteves. Ele orientou que Igarashi coletasse um novo PCR do paciente, mas a indicação era para que fosse um PCR de emergência, em que o resultado sairia mais rápido – modalidade aplicada a pacientes que estão prestes a serem operados. O resultado não foi anexado ao prontuário. 

O médico faleceu às 17h25 do dia 15 de janeiro. O atestado de óbito, no entanto, deveria informar que Wong teve Covid porque a infecção pelo vírus foi o que motivou todas as complicações subsequentes que o mataram. É essa a orientação das secretarias de Saúde dos estados, inclusive a de São Paulo. “A declaração de óbito deveria mostrar o código para Covid senão como causa básica da morte, ao menos como causa secundária”, afirma o epidemiologista Wanderson Oliveira, que elaborou os protocolos de manejo de corpos do Ministério da Saúde quando era secretário de Vigilância em Saúde, na gestão de Luiz Henrique Mandetta. Mas o atestado de Wong não menciona Covid nem como causa básica nem secundária. Em vez disso, limita-se a informar as doenças que decorreram da Covid. No campo da causa mortis, diz o seguinte: choque séptico, pneumonia, hemorragia digestiva alta e diabetes mellitus. A única doença prévia de Wong, no momento em que foi internado, era uma diabetes leve, que ele vinha tratando com medicação adequada. As outras três intercorrências – o choque séptico, a pneumonia e a hemorragia digestiva – foram provocadas por complicações do tratamento da Covid.

Wong foi velado e enterrado em 16 de janeiro no Cemitério do Morumbi, em São Paulo. A cerimônia foi íntima, mas, como a razão de sua morte foi omitida nos documentos, as restrições previstas no protocolo determinado às vítimas da Covid-19 não foram cumpridas.

Em março de 2021, dois meses depois da morte de Wong, procurei a Prevent Senior porque, já naquela época, havia informações de que ele falecera de Covid. O presidente da empresa, Pedro Benedito Batista Jr, que será ouvido pela CPI da Pandemia nesta quarta-feira, me disse que não comentaria nada sobre o paciente sem autorização da família. Argumentei que precisava entrevistá-lo porque as informações divulgadas pelo próprio Wong em suas redes haviam sido apagadas. Batista se limitou a responder que “nosso país infelizmente faz isso com pessoas sérias: faz questão de apagar o que construíram”. 

Examinando-se o prontuário de Wong constata-se que 123 funcionários do Sancta Maggiore prestaram atendimento ao pediatra durante seu período de internação — todos eles mantiveram sigilo sobre o tratamento precoce, os tratamentos experimentais e a causa da morte do paciente. Agora, Pedro Batista Jr. terá de responder por isso – e outras irregularidades que a Prevent Senior pode ter cometido. No dia 16 de setembro, uma reportagem da GloboNews mostrou áudios e mensagens de gestores da Prevent Senior indicando o tratamento precoce e ordenando que nada fosse dito aos familiares ou aos próprios pacientes. A reportagem também mostrou que a Prevent Senior conduzia uma pesquisa sobre a eficácia da hidroxicloroquina omitindo os dados dos pacientes que morriam durante o tratamento.

Procurada pela piauí, a Prevent Senior disse que não comentaria casos específicos de pacientes sem autorização da família. Carla, viúva de Wong, enviou a seguinte nota à reportagem: “A família informa que não tem poder para alterar nenhuma informação no atestado de óbito e vê com incredulidade a invasão do prontuário. Informa ainda que não existe nada a ser dito e pede que respeite o nome do doutor Anthony Wong.”



Uol Notícias/Piauí

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