Há 100 anos, Bar do Bugre dava início à vida noturna cuiabana

Fechado há cinco décadas, bar foi o primeiro no Centro da Capital e era frequentado por personalidades


 Cuiabá-MT, 22 de Novembro de 2020 

Completando o centenário de sua inauguração neste ano, o “Bar do Bugre” foi o pioneiro da hoje famosa vida noturna de Cuiabá, reunindo personalidades e pessoas comuns no Centro da cidade.

Instalado na esquina da Avenida Getúlio Vargas com a Pedro Celestino, o estabelecimento - que funcionou durante exatos 50 anos e foi palco de encontros, fofocas, festas e paqueras - hoje dá lugar a uma farmácia e um restaurante.

Oficialmente era Bar Moderno, nome que acabou sendo deixado de lado, já que o ambiente era conhecido por ser de propriedade de Olyntho Neves, conhecido como "Bugre".

Em seu tempo de glória, conforme descreve o filho do proprietário, o médico e ex-reitor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Gabriel Novis Neves, o bar contava com um grande salão principal e outro um pouco menor.

“O salão pequeno era sorveteria, que tinha duas janelas e as portas que davam para a catedral. Na frente eram oito ou nove portas que davam para a Praça Alencastro. Quinta-feira a banda da Polícia Militar tocava e todo mundo ia passear, paquerar, namorar. Ali que surgiam os casamentos”, relembra.

Gabriel, hoje com 85 anos, trabalhou como garçom no bar em sua juventude. Ele conta que nomes como o historiador Rubens de Mendonça eram frequentes no Bar do Bugre.

“Ele, de manhã, chegava ao bar, sabia que era o centro da fofoca, e lançava uma mentira. Aí passava à noite e contavam para ele. Ele falava: ‘Lancei uma mentira de manhã e cresceu ao longo do dia’. Cada um colocou um pouquinho”, conta.

O então governador de Mato Grosso, João Ponce de Arruda, também foi um grande cliente do Bugre.

O político, nos dias mais quentes, chegava a reclamar do cheiro forte do banheiro, que era usado por todos que andavam pelo Centro.

“Todo mundo que tinha algum problema ia para o Bar do Bugre e usava o banheiro. Evidentemente que a limpeza não dava conta. Quando vinha o calor, aquele cheiro incomodava o governador. Meu pai falou: ‘E por que não manda construir um mictório público?’. Até hoje nada”, afirma o médico.

Reduto de artistas, escritores e estudiosos, foi nesse bar simples que muita produção cultural e intelectual foi produzida, segundo o filho, tendo um papel importante na História da Capital.

“Dali que saíam as músicas de carnaval. Era ali que o esporte convivia. Os jogadores de futebol ficavam no bar. À noite as notícias circulavam ali. O bar preencheu uma lacuna muito grande em Cuiabá”.

Apesar de muitas histórias, o dia 2 de setembro de 1945 foi o que mais marcou a memória do médico. A data estabelece o fim da Segunda Guerra Mundial e toda a população cuiabana foi comemorar no coração da cidade.

Na época, sua mãe era quem fazia os salgados vendidos no bar de forma totalmente artesanal. Nesse dia, dona Irene Novis Neves chegou a produzir o que pode ser considerado a maior quantidade de pasteis da história cuiabana.

“Ela me ensinou a me fritar o pastel e depois levava para o bar com uma bandeja na cabeça e no balde. Era perto. Foi o dia que eu mais fritei pastel. Lembro-me que chagava lá com 150 pasteis, deixava no bar e voltava. Meu pai telefonava para minha mãe falando que já tinha acabado o que eu tinha levado”, descreve.

Quando Olyntho já tinha 76 anos, alguns problemas degenerativos que avançavam com a idade, se tornou insustentável manter o estabelecimento. O Bar do Bugre encerrou as atividades no mesmo dia em que abriu as portas, 50 anos depois.

“A situação já estava precária. Mudou também a economia, o bar já não andava bem. Chegou em 29 de junho de 1970 e fechou. Ele tinha um orgulho muito grande de fechar esse bar com 50 anos”, revela o filho.

O médico afirma que ele e outro irmão gostariam de dar continuidade ao estabelecimento, mas o pai não permitiu e acabou virando parte da história cuiabana.

O médico Gabriel Novis Neves foi o primeiro filho do casal


Noites de sucesso

Eugênia Neves, mãe de Bugre e avó do médico, se casou com o cuiabano Gabriel Souza Neves aos 14 anos, no final do século 19. O casal teve 18 filhos.

Eugenia se preocupou em construir um futuro para os filhos, segundo seu neto.

“Quando meu pai estava com 26 anos e outros irmãos foram crescendo, minha avó pensou em algo para esses rapazes fazerem alguma coisa”, conta Gabriel.

Na época, no ano de 1920, estava sendo construído um cinema em um terreno onde mais tarde se tornou o Grande Hotel e, já na modernidade, se transformou em uma Secretaria do Governo.

“Era cinema mudo, em preto e branco. Na entrada havia um salão e surgiu a oportunidade para o meu pai montar uma cantina”, detalhou o filho.

Bugre, então, providenciou de cerveja, suco, refrigerante e quitutes, que eram feitos por sua mãe, para a inauguração do novo point da cidade.

“O forte eram os salgadinhos. Era o núcleo familiar ajudando aquele negócio. Era um sucesso, toda a sociedade foi. Foi o primeiro bar no centro da cidade. Ali era o centro de vivência da Capital, tudo girava em torno do Bar do Bugre”, recorda o médico.

Com a exaltação e o clima descontraído, os clientes começaram a perguntar para Bugre qual era o nome da “espelunca”. Ali, naquele momento, o comerciante se viu obrigado a pensar em algo rapidamente.

“Meu pai nunca tinha pensado em colocar nenhum nome. O primeiro nome que teve foi Bar São Pedro, mas não colou. Houve vários nomes, mas nenhum deu certo. Até que decidiu: ‘não é nada disso. Aqui tem que ser Bar Moderno porque ele será eterno e sempre moderno’. Esse bar foi a coisa mais desmoderna que eu conheci na minha vida. Mas ficou Bar Moderno”.

O estabelecimento foi registrado com esse nome, porém os frequentadores ainda não estavam satisfeitos. Eles, então, passaram a se referir ao local como “Bar do Bugre”, em alusão ao apelido do proprietário. E, como o cliente tem sempre razão, o nome pegou

A movimentação foi tamanha que todo o estoque do bar foi consumido logo na noite de estreia. No dia seguinte, Olyntho teve que correr para repor a mercadoria para mais uma noite de atendimento.

“Na estreia tinham consumido toda a bebida, refrigerante, salgadinhos, não havia mais nada. Salgadinhos não eram um problema, tinha mão de obra para fazer empadinha, coxinha, pastel, bolo... Meu pai teve que comprar, com o dinheiro que ele arrecadou, mais cerveja. Foi praticamente assim. Tinha que comprar cerveja todo dia e foi prosperando”, relata o filho.

Dois anos depois, Bugre sentiu a necessidade de se instalar em um local maior. Não muito longe dali, a exatamente uma quadra, o comerciante encontrou um casarão de frente com a Praça Alencastro, na esquina da Getúlio com a Pedro Celestino.

“Meu pai comprou essa casa, fez algumas adaptações e passou a ser o bar. Hoje tem uma farmácia no lugar, um restaurante e outros comércios, bem na esquina”. 


A família Novis Neves

Somente dez anos depois da mudança de local que Olyntho conheceu a mulher que viria ser sua esposa e mãe do médico, Irene Novis Neves.

“Meu pai conheceu minha mãe porque ela frequentava a Praça Alencastro e viu uma mulher linda, exuberante, mas muito mais nova que ele. Ele teve o desplante de conversar com essa moça e falou que queria namorar para casar. E ela casou, o pior foi isso. Mas deu certo”, recorda Gabriel.

Em 1934, um ano após o início do namoro, o casal oficializou a união e no ano seguinte nasceu o primeiro filho. Ao todo, foram nove - dois dos quais já falecidos.

De acordo com o médico, Irene atribuiu o sucesso do bar e a prosperidade da família a São Pedro, por conta do estabelecimento ter sido inaugurado no dia dele.

Por conta disso, ela sentiu a necessidade de agradecer ao santo. E convenceu o marido a realizar uma procissão, com missa e festa, para São Pedro.

“Compraram a imagem de São Pedro e a partir daí todo ano, no dia 29, fazia uma missa. Meu pai de terno e gravata, saía no meio da rua, era muita gente na época. Eles levavam a imagem no altar, o padre celebrava a missa, benzia o santo”, descreve Gabriel.

De volta para casa da família, tinha chá com bolo, almoço e, à noite, uma fogueira com muita comida.

“Era uma festona. Meu pai fez até morrer. Depois minha mãe começou a fazer, mas veio a idade. Depois que ela morreu, os filhos fizeram um sorteio para saber quem ia ficar com São Pedro e caiu com a Aracy, uma das mais novas”, conta o filho.

Mesmo depois do falecimento dos pais, os filhos continuam realizando a festa do santo anualmente.

Olyntho morreu com 88 anos e Irene, bem mais tarde, aos 92. O casal conseguiu criar os nove filhos e ainda custear o ensino superior de todos eles no Rio de Janeiro. Tudo isso apenas com o Bar do Bugre.

“O final da vida dele foi por problema degenerativo que nós todos herdamos, como artrose, essas disfunções ósseas”, contou.

Quando os filhos foram encerrar as atividades do bar, encontraram uma caderneta onde os clientes compravam fiado. Segundo o médico, somente as dívidas de quem tinha o nome no caderno dava para Olyntho continuar vivendo sem preocupações.

“Lá no Bar do Bugre, as pessoas pegavam cigarro e outras coisas e meu pai anotava. Mas ele não tinha cobrador. Depois que ele morreu, fomos ver o que ele tinha anotado, dava para ele ficar bem de vida. Mas ele nunca cobrou ninguém”, revelou.


Bar do Bugre ficava na esquina entre a Avenida Getúlio Vargas e a Pedro Celestino





Digoreste News, com Midia News

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