Mulher se revolta com a morte da irmã, medicada com Cloroquina

“Se tivessem me falado dos perigos, eu não teria autorizado”, diz irmã de paciente medicada com cloroquina sem consentimento


Zemilda, 54 anos, que faleceu em maio, foi tratada com a droga sem que a família fosse informada da falta de eficácia e segurança do medicamento

No dia 1º de maio deste ano, o telefone da auxiliar de enfermagem aposentada e cuidadora de idosos Zileide Silva do Nascimento, de 56 anos, tocou em sua casa em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, enquanto ela se arrumava para iniciar um fim de semana de trabalho. Do outro lado da linha, uma pessoa da equipe comandada pelo médico Renan Kenji Hanada Pereira, que atua no Hospital Municipal de Mogi das Cruzes, referência no tratamento da Covid-19 na região, informou o estado de saúde de sua irmã Zemilda Silva do Nascimento Gonçalves: “Ela está estável, mas entramos com o medicamento hidroxicloroquina”.

Zemilda, que passou duas semanas internada no hospital por causa da Covid-19, seguiria com o tratamento por mais três dias, segundo o informado pelo hospital. A dona de casa de 54 anos foi medicada com a hidroxicloroquina entre os dias 30 de abril e dia 4 de maio. Depois disso teve que fazer duas hemodiálises porque teve problemas nos rins. No dia 10 de maio, porém, Zileide recebeu um telefonema esperançoso: a equipe médica disse que o estado de saúde de sua irmã estava melhorando, que o pulmão ainda estava afetado, mas que os demais órgãos estavam reagindo bem, inclusive o rim.

Mas na madrugada do dia 11 o hospital ligou para Zileide comunicando o óbito de Zemilda. “Um médico só me falou que ela teve uma parada respiratória. Esse médico me disse que ela estava mal, com os rins comprometidos, completamente o oposto do que me passaram horas antes”, conta Zileide, relembrando a dor de não poder reconhecer o corpo de sua irmã, pois não tinham roupa apropriada.

“Não assinei o reconhecimento do corpo. O hospital me informou que iria verificar se tinha roupa apropriada para eu entrar em uma ala com dois pacientes mortos pela Covid-19, mas no final das contas só me pediram para assinar o atestado de óbito.” No velório, Zileide e seus familiares ainda tentaram olhar para a irmã pela última vez. Ao perguntarem aos funcionários do cemitério como eles tinham certeza de que era Zemilda dentro do caixão lacrado ouviram que bastava ler seu nome na etiqueta colada na madeira.

Na certidão de óbito de Zemilda Silva do Nascimento Gonçalves, constam como causas da morte insuficiência respiratória aguda e infecção por coronavírus, HAS (pressão alta) e hipercolesterolemia (colesterol alto). As duas últimas complicações, que Zemilda já apresentava ao ser internada, além de obesidade mórbida, estão relacionadas com problemas cardíacos, o que torna ainda mais perigoso o uso de cloroquina e hidroxicloroquina, como já comprovaram estudos realizados no Brasil e em outros países. 

No dia 17 de junho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu definitivamente as pesquisas para avaliar a eficácia da cloroquina e de sua derivada, a hidroxicloroquina, pois os resultados mostram que, além de representar riscos para pacientes, não há benefício na droga para tratar a doença provocada pelo novo coronavírus.

Zemilda era mãe solo de um menino de 14 anos que nasceu com síndrome de Down. A irmã, Zileide, que cuida do garoto enquanto ele não vai morar com a família do pai, falecido há quatro anos, diz pra ele todas as noites que Zemilda “virou uma estrelinha no céu”, como ela conta.


Desrespeitando o protocolo

O telefonema em que Zileide foi informada de que Zemilda seria medicada com hidroxicloroquina ocorreu no terceiro dia de internação. A comunicação diária com familiares de pacientes foi adotada como protocolo por muitos hospitais brasileiros durante a pandemia porque os familiares não podem acompanhar os doentes na internação. Mas, em relação ao uso da cloroquina e hidroxicloroquina, o protocolo do Ministério de Saúde não foi cumprido, de acordo com o relato dos familiares. 

Eles dizem que Zemilda não poderia ter autorizado o uso dos medicamentos, como exigido, porque estava entubada; nesse caso, segundo o protocolo, a família é que teria que consentir, mas alega que foi apenas comunicada do tratamento. Também não foi informada de que a droga não tem eficácia nem segurança cientificamente comprovadas, razão pela qual paciente e/ou família poderia recusar a medicação, conforme o protocolo do Ministério da Saúde.

A irmã Zileide, que já trabalhou como enfermeira em uma UTI de um hospital particular de Mogi das Cruzes, diz que nem sabia da existência desses protocolos. “No primeiro dia, o hospital me disse: ‘Sua irmã está ruim; segundo dia, está ruim; no terceiro dia, falaram que entraram com hidroxicloroquina’. Eu até pensei: ‘Só agora?’. Eu imaginava que fosse algum medicamento bom. Se tivessem me falado dos perigos, eu não teria autorizado.”



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