Moro pulou do navio antes do 'Titanic afundar de vez', diz analista americana

A pandemia enfraqueceu o presidente, com desgastes e a má performance dele em coordenar ações contra a pandemia. 


Sergio Moro, agora ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, ao se demitir em frente às câmeras de TV, "pulou do navio antes que esse Titanic afunde de vez", avalia a cientista política americana Amy Erica Smith.

Smith, que é professora da Iowa State University, nos Estados Unidos, e especialista em política brasileira e movimentos evangélicos, diz acreditar que Moro esteja genuinamente preocupado com o Estado de Direito no Brasil ao afirmar que seu ex-chefe, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), está tentando politizar o comando da Polícia Federal (PF).

E que ele não descuidou de sua própria imagem, ao decidir não apenas pedir demissão, mas transformar a saída quase em uma denúncia das ações recentes de Bolsonaro.

Em entrevista por telefone à BBC News Brasil, Smith questiona ainda a "urgência de Bolsonaro" em interferir na PF em um momento político já frágil, em meio à pandemia de coronavírus.

Autora de Religião e Democracia Brasileira: Mobilizando o Povo de Deus, lançado em 2019, ela afirma que os evangélicos seguem como a base do apoio popular do presidente, graças à agenda anti-aborto e às políticas de gênero e sexualidade que o governo defende.

"Mas, se todas as elites políticas abandonarem Bolsonaro, eles também o abandonarão. Não vão dar um cheque em branco para Bolsonaro", diz Smith.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - O que a demissão de Moro representa?

Amy Erica Smith - Isso mostra que ele está extremamente preocupado com o Estado de Direito. Uma das coisas que Moro simboliza é a importância do Estado de Direito no Brasil. Ele levou muitos políticos poderosos à Justiça por atos de corrupção, como Lula.

Ele é uma figura complicada e ambivalente, que representa a importância do combate à corrupção para muitas pessoas e, ao mesmo tempo, o risco potencial de que o combate à corrupção seja politizado. De alguma maneira, o próprio Moro ajudou a politizar a PF e a Justiça quando aceitou o cargo de ministro.

Quando ele vai à TV e diz que Bolsonaro está tentando politizar a PF, o que significa que o Estado de Direito está em perigo, isso mostra que ele está extremamente preocupado. Moro não é inocente. Sabe que ao fazer isso ele pode levar o Supremo Tribunal Federal e o Congresso a intervirem.

Então, vejo um ponto de inflexão na história brasileira em relação ao Estado de Direito, mas não sei dizer para qual lado o país irá: se Bolsonaro será contido pelas instituições nessas indicações políticas, o que as fortaleceria, ou se ele vai conseguir indicar os nomes que quiser para a PF e paralisar as investigações que quer eliminar.

BBC News Brasil - Por que essa crise acontece nesse momento, enquanto o Brasil tem o recorde de casos e mortes por covid-19 em um único dia?

Smith - Moro pode estar tentando pular do navio antes que esse Titanic afunde de vez, porque ele está vendo esses movimentos, ele faz menção à pandemia e à necessidade de isolamento em seu pronunciamento. Ele poderia ter saído em muitos outros momentos, como em dezembro de 2019, mas ele escolheu sair quando Bolsonaro está extremamente fraco.

A pandemia enfraqueceu o presidente, com desgastes por ter de demitir o (ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique) Mandetta, a má performance dele em coordenar ações contra a pandemia. Muitas pessoas percebem o barco afundando, e Moro decidiu que não quer mais ser associado a isso. Ele vai sair como um herói pra algumas pessoas.

BBC News Brasil - Ao justificar a saída do ministério, ele afirmou que não viu uma tentativa de interferência política como essa quando era juiz da operação Lava-Jato, mesmo com os casos graves de corrupção que envolviam o Partido dos Trabalhadores (PT), da então presidente Dilma Rousseff, e afirmou que um movimento de trocas de diretores ou delegados poderia ter acabado com a operação.

Smith - Embora não diga isso explicitamente, Moro está reconhecendo que o combate à corrupção no governo do PT era melhor, algo que os cientistas políticos têm aliás dito há anos. E esse reconhecimento por parte dele é importante. Ele ajudou a centro-direita do país a acreditar que Bolsonaro combateria a corrupção e restabeleceria a Justiça e, agora, está dizendo que sua própria crença nisso foi incorreta e que apoiar esse projeto foi um erro, ao menos em parte. Isso é um risco grande para Bolsonaro.

BBC News Brasil - Por quê?

Smith - Bolsonaro ganhou a Presidência graças à coalizão de muitas forças, que atuaram com a premissa de que Bolsonaro seria a melhor opção disponível para resgatar a economia e restaurar a Justiça e a segurança pública. E a saída de Moro significa que a principal força pra garantir Justiça e segurança não só não vê essas melhoras acontecendo como não suporta mais fazer parte disso. Bolsonaro sempre disse publicamente que ele era um herói e seria tratado como tal. E Moro vem a público dizer que isso, na verdade, é falso.

BBC News Brasil - Por que ele decide vir a público dizer tudo isso e não apenas enviou uma carta de demissão?

Smith - Existem dois objetivos nisso. O primeiro é que acho que ele está realmente muito, muito preocupado com o Estado de Direito no Brasil. E ele espera que, ao vir a público, possa chamar a atenção, dar um alerta às instituições, como ao Supremo Tribunal Federal, ao (Rodrigo) Maia, na Câmara, o (Davi) Alcolumbre, no Senado, de que ele precisam agir e se opor. Então eu acho que isso faz parte dessa estratégia, porque ele vê isso como a melhor maneira de levar outras pessoas a cumprir a missão que ele disse que tinha, de fortalecer o Estado de Direito, e também de ter a opinião pública do lado dele, o que é realmente importante ainda mais se Bolsonaro não for responsabilizado por aquilo de que ele parece estar lutando para fugir. Então, Moro está protegendo sua própria imagem, algo sobre o qual ele sempre foi extremamente preocupado. Não sei o que ele pretende fazer no futuro, mas esses 40 minutos na TV se explicando poderia ser o primeiro ato de uma campanha presidencial.

BBC News Brasil - Por que Bolsonaro detona uma crise com um de seus ministros mais populares nesse momento?

Smith - Não acho que ele está sendo muito efetivo em suas estratégias, mas vamos pensar primeiro: por que o Bolsonaro precisa interferir em investigações da PF? Não sou uma especialista nisso, mas penso que é porque as investigações estão chegando muito próximo à família Bolsonaro. Então se tornou algo urgente para ele, e só isso explica essa interferência nesse momento. Segunda pergunta: por que ele acha que poderia sair ileso de uma interferência como essa? Ele calculou mal sobre o Moro. Pensou que poderia intimidar Moro a fazer o que ele queria, achava que Moro recuaria.

Seria um duplo objetivo: interromper investigações e minimizar Moro ao mesmo tempo. Ele queria botar o Moro lá embaixo, já não queria mais se aproximar dele, não via mais vantagens políticas nisso. Mas foi um calculo político muito ruim, porque vai dificultar a continuação de seu governo.

Se Moro tivesse só mandado uma carta de demissão, teria sido talvez uma vitória de Bolsonaro, mas a maneira como Moro se demitiu, foi muito grave pra ele. Bolsonaro subestimou a qualidade política de Moro e talvez tenha superestimado o tamanho da sua base de apoio. Moro vai ganhar força depois disso. Não vai ser só um ex-ministro, mas pode ser uma concreta ameaça para o futuro de Bolsonaro. Ele pode até ficar calado, submergir pelos próximos tempos, mas o que ele disse hoje vai falar por ele ao longo de meses.

BBC News Brasil -A senhora acredita que essas acusações de Moro levariam a um processo de impeachment?

Smith - Não sei se seria um gatilho imediato para isso, mas certamente vai exacerbar essa possibilidade no horizonte político brasileiro.

BBC News Brasil - Como fica a base de apoio popular de Bolsonaro?

Smith - Hoje, ele tem em torno de 30% de apoio. A menor parte disso são os apoiadores dele que vem do movimento do Olavo de Carvalho e do gabinete do ódio, que são os conservadores linha dura. Uma parte da elite de centro-direita, pró-Lava Jato, ele já vem perdendo. E você tem os evangélicos, que não são um grupo coeso. Mas a maior parte dos fiéis evangélicos está muito preocupada com políticas de sexualidade, gênero e aborto, e o apoio deles ao Bolsonaro é por essa agenda ideológica e menos pelo combate à corrupção. Então, em alguma medida, eles estão dispostos a perdoar todas as falhas de performance do Bolsonaro, porque ele garante o bloqueio da legalização do aborto, de políticas LGBT. Alguns líderes pentecostais também expressaram apoio a Bolsonaro porque ele lhes dá algum suporte político e base para fortalecer os candidatos das próprias igrejas.

A saída de Moro afeta, sim, (sua base de apoio), mas não acho que ele vai perder o apoio dos evangélicos tão rápido. Mas, se todas as elites políticas abandonarem Bolsonaro, eles também abandonam. Não vão dar um cheque em branco para Bolsonaro. Muitos evangélicos realmente acreditam no governo e querem continuar, mas, se passarem a perceber Bolsonaro como corrupto e fraco, podem deixá-lo.


BBC News Brasil



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